segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

E conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará

“Todos os homens nascem livres e iguais em direitos, trata-se do primeiro artigo da declaração universal dos direitos humanos e é a noção de liberdade que se quer ver debatida. Será um povo livre para fazer o que quiser? Um país soberano pode fazer o que quiser? Enquanto indivíduo serei livre para fazer o que quero? Se somos seres dotados de liberdade, o que é um facto anterior à afirmação dos direitos, logo temos a capacidade de fazer escolhas e temos também a capacidade de realizar acções correspondentes às nossas escolhas, ou seja, sendo verdadeira esta premissa assume-se que podemos fazer o que queremos. 



No entanto, outro facto óbvio contradiz esta nossa vontade e encontra constrangimentos ou obstáculos de vários tipos, natural, legal ou moral. “Sou livre de fazer o que quero dentro daquilo que posso” (Antoine de Rivarol). Existe liberdade, sim, mas com a liberdade existe a falta dela porque há aquilo que posso fazer e aquilo que não posso fazer. Ela choca com coisas que não são voluntárias e que afectam toda a acção possível. Mesmo que eu queira, é impossível o meu corpo atravessar uma parede. Existe todo um involuntário que se mescla com o voluntário o que explica a dificuldade, senão a impossibilidade, de atingir a unificação da vontade de modo que esta se afirme. Ah, se quiséssemos o que queremos! Se considerarmos a Liberdade como um absoluto ela teria de sobrepujar todos os obstáculos e pressões, mesmo os de carácter material. Não podemos fazer tudo o que queremos, é um facto óbvio, e a liberdade vem antes da prescrição dos deveres da lei. 

Portanto, a ausência de constrangimentos nos tornaria absolutamente livres, como a nossa primeira definição nos levou a crer que nesse caso só seríamos livres na ausência de obstáculos, de constrangimentos ou pelo menos de deveres e se assim não o formos a declaração universal dos direitos humanos contradiz-se ao afirmá-lo. Melhor, somos então levados inevitavelmente a definir a liberdade de outra forma, de tal forma que admita um quadro de constrangimentos e, simultaneamente, um quadro que lhe garanta o contrário, o direito a levantar a mesma questão a um nível metafísico ou teológico. Sou livre de afirmar que 2+2=4 da mesma maneira que alguém é igualmente livre de afirmar que 2+2=5. Mas será que este é mais livre que aquele? 

As Escrituras relatam criteriosamente que o conceito de Liberdade está umbilicalmente ligado ao de Verdade E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (S. João 8), ou mesmo na pluma de escritores seculares “A liberdade só existe quando todos os nossos actos concordam com todo o nosso pensamento” (Agostinho da Silva). E é do domínio do bom senso que a Verdade, ou parte dela, pode ser conhecida, e pelo menos em parte, porque desejada. Como o amor à estética precede a contemplação da arte, ou de uma composição musical, ou como o amor à ética precede o pensamento moralmente correcto, o amor ao conhecimento precede o seu estudo, o amor à Verdade precede o seu conhecimento. Consequentemente, o raciocínio relativista (várias verdades em oposição umas das outras) é autodestrutivo, pois se tudo é relativo, incluindo a Verdade, segue-se que a afirmação tudo é relativo seja igualmente relativa. Também que o conhecimento é mais que propriamente raciocínio ou apenas Razão. “Não podemos conhecer uma laranja só de olhá-la; para entendê-la, é tão necessário saboreá-la como vê-la. A lei do som não pode dar-nos o entendimento da música, é necessário ouvi-la. Lógica somente não pode demonstrar a beleza do pôr do sol, ou de um carácter nobre. O mais elevado conhecimento implica a acção integral da alma, a perspicácia, não somente de um olho, mas dos dois olhos da mente, do intelecto e do amor ao absoluto” (A. H. Strong). 

Como o intelecto se tem separado dos afectos, isto é, da disposição correcta, das afeições correctas e do propósito correcto da vida é natural que o cientismo venha a ocupar de maneira cada vez mais evidente o lugar deixado pelos afectos. Se o meu entendimento fosse apenas governado pela razão e tendo confiança, ou fé, em evidências suficientes e palpáveis na engenharia que construiu aviões, ou na destreza dos pilotos e ainda na teoria das probabilidades, então não sentiria apreensão cada vez que descolo porque não consigo evitar imaginar que vou ter um acidente. Embora o raciocínio queira tornar-me livre da incerteza, a imaginação debate-se com outro problema, perco a fé no que a razão me ditava. Embora a minha fé esteja fundada na razão, as minhas emoções e imaginação guerreiam com elas cuja batalha por um lado trava-se entre a razão e a fé e por outro entre a imaginação e emoção. Como o “cientismo” que reivindica a reputação de depender unicamente da razão sem, contudo, poder escapar à realidade das emoções que constantemente lhe querem revelar o “outro lado da questão.

 Contestamos a tradição em nome da liberdade e contestamos a autoridade em nome da igualdade. Se sou livre porque devo obediência a este e não a outro? Porque devo seguir esta moral e não outra? Porque devo seguir uma tradição e não começar uma nova? Porque devo obedecer a uma transcendência revelada, uma ordem divina, e não a uma imanência racional, uma ordem fundada no Humano? Porque devo obedecer “tout court seja ao que for. A rapariga dos Beatles em Shes Leaving Home, filha única, tomando aquela decisão tão própria à juventude de ganhar a sua própria liberdade fugindo de casa e provocando a eterna questão da mãe em lágrimas, mas o que lhe fizemos nós? obtendo apenas a resposta fiz tudo o que tinha a fazer e nunca consegui viver como queria. E ao encontrar um rapaz na autoestrada pensa então que vai encontrar a liberdade e emancipação, liberdade essa que, noutra dimensão, havia outrora sido prometida pela Revolução Francesa e pelo Iluminismo e que se espalhará por toda a Europa formando a sua característica. 

Evidente que essa linha de pensamento vai produzir um certo número de problemas e numa reacção a esse abstracionismo na Europa, França, Alemanha, Inglaterra, vai rapidamente nascer outro movimento chamado Romantismo que, antes de mais, foi o berço do Nacionalismo, mas igualmente um grito de alarme dos teóricos da omnipotente tradição, base de toda a sociedade organizada, e particularmente da omnipotência da Língua. Contra a liberdade individual abstracta iluminista os românticos estribam-se na tradição, na herança, que o Homem não é apenas um conjunto de átomos flutuando no espaço. Ser francês, inglês ou escocês não é o mesmo, mas sim receber como herança todos os costumes e idiomas, fato que as Luzes rapidamente apagaram, o que é contestado pela ideia de que somos descendentes de uma linhagem que não pode ser simplesmente dispersa com uma vassourada. Na impossibilidade de dar continuidade a essa linhagem, de certa maneira ordenada pelo sentido de nascença, e os iluministas querendo instaurar a liberdade absoluta leva os românticos a acusá-los de terem semeado as bases para uma era de terror durante e Revolução Francesa. Ou, como Freud tão atrevidamente afirmava para o escândalo da Viena do século 19, "pensamos ser os responsáveis por nós mesmos, mas somos apenas os brinquedos de impulsos inconscientes, os quais só nos dão conta quando já deixaram a sua marca em nós". O combate incessante entre o Ego e o Superego. No final todo este conflito se passa no domínio da volição, como um pequeno monarca o indivíduo quer apenas fazer o que lhe apetece sem se dar conta que mesmo um monarca está ligado a constrangimentos de ordem social, política e natural.

 Eles desfrutam, para sempre, da horrível liberdade que exigiram e são, portanto, escravos de si mesmos (C S Lewis)

 

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