3. Crítica
SANTIFICAÇÃO PROGRESSIVA (obras
salpicadas pela graça)
Normalmente acontece que os crentes recentemente convertidos são levados a pensar que as suas obras contribuem para a santificação como reacção à sua recente e passada vida de pecado e querem definitivamente colocar-se fora da alçada do pecado torando-se extremamente zelosos pelas boas obras, tornando a sua vida cristã num conjunto de regras a cumprir, de “obrigações” e “regras”. É indubitavelmente um salto radical, mas por esforço próprio. Acreditam piamente que o sucesso da sua vida cristã depende dos seus esforços, do reconhecer e pedir perdão pelos pecados, do tentar adivinhar qual o pecado que impede o incremento da salvação, do tentar encontrar a receita exacta para um “comportamento cristão” religiosamente correcto. Quando falham duvidam da salvação. Caem num comportamento cíclico que oscila entre a felicidade pelo sucesso e a depressão pelo fracasso. Dificilmente terão a alegria da salvação tornando-se amargos, legalistas que olharão os seus irmãos espirituais com um olhar inquisidor e competitivo, numa corrida onde há vencedores (obras melhores) e vencidos (obras piores). O Reformed Baptist Daily reporta o seguinte “a santificação progressiva é o processo através do qual diariamente nos tornamos mais semelhantes a Cristo”. MacArthur escreve que a santificação é um trabalho duro. Compreendo o teor da mensagem, mas é uma derrapagem doutrinária bastante acentuada, pois se assim for concluímos que o trabalho árduo é um requisito para a salvação, contrariando as Escrituras; Berkhof escreve na sua Systemathic Theology “Pode-se definir a
santificação como a graciosa e contínua operação do Espírito Santo pela qual Ele liberta o pecador justificado da corrupção do pecado, renova toda a sua natureza à imagem de Deus, e o capacita a praticar boas obras” veiculando a ideia de uma renovação progressiva do crente; Milllard Erickson dedica o capítulo 46 da sua Teologia Sistemática à santificação e intitula-a “A continuidade da salvação” e, adiante, “ser santificado significa pertencer ao Senhor”. Santificação, nesse sentido, é algo que ocorre logo no início da vida cristã, no momento da conversão, com a regeneração e a justificação” e logo mais abaixo “o processo de nos tornarmos mais semelhantes a Cristo”. Mas não é assim. Ainda que a santificação seja exclusivamente de Deus, isto é, o seu poder reside inteiramente na santidade dele, o crente é exortado constantemente a agir e a crescer no que diz respeito à salvação (…) Portanto, mesmo que a santificação seja obra de Deus, o crente também tem o seu papel, que inclui tanto a remoção da pecaminosidade quanto o desenvolvimento da santidade”. Conforme o tradicionalmente ensinado, a santificação do crente é contínua e gradual: ocorre durante toda a vida do crente; é uma transformação moral e espiritual: leva à conformidade com a imagem de Cristo (Romanos 8:29); é uma cooperação entre Deus e o crente: embora o Espírito Santo opere no crente, ele também tem a responsabilidade de obedecer e buscar a santificação; é dinâmica: pode haver avanços e retrocessos, mas o processo continua até o crente ser glorificado. Neste processo inevitavelmente tem de subjazer o elemento de aumento, de incremento.Nesta visão, a santificação
posicional é o fundamento sobre o qual se constrói a santificação progressiva.
Em Cristo, o crente já é santo e justificado (posição), mas ainda é chamado a
crescer em santidade diariamente (progressão). Esse crescimento reflecte a obra
contínua do Espírito Santo e a resposta obediente do crente. O processo
culminará na santificação final ou glorificação, quando estaremos completamente
livres do pecado e semelhantes a Cristo na eternidade.
Na prática, e nesta visão,
trata-se de uma dupla santificação, é posicional e progressiva, é única e
contínua, somos santos, mas vamo-nos a tornar mais santos, o “agora e ainda
não” na teologia. Todavia, convém a bem da argumentação que o “agora e ainda
não”, pode não consiste numa progressão de estado, mas simplesmente no estado
que no âmbito jurídico de denomina de facto e de jure. O que
representa uma situação que, do ponto de vista legal, é válida e legítima,
independentemente de como ela funciona na prática em contraste com a descrição
do que realmente acontece, mesmo que não seja na prática confirmado. O crente é
santo de jure, pela declaração de justificado, mas de facto, na
prática do quotidiano, ainda possa não discernir a sua posição legal. Tal como
os escravos libertados nos EUA no século 19 que, embora legalmente libertados,
libertos de jure, durante algum tempo ainda se comportariam de facto
como escravos. Todavia, não eram mais progressivamente mais livres do que
anteriormente.
SANTIFICAÇÃO POSICIONAL
Tendo em conta que no grego os
tempos verbais dizem mais da qualidade da acção do que propriamente o seu tempo
em termos cronológicos, o tempo perfeito em Heb. 10.10 traduzido para português
“temos sido santificados” implica uma acção que teve lugar algures no passado,
mas cuja relevância se manifesta, ou vai-se manifestando, no presente. O “temos
sido santificados” pode ser compreendido de duas maneiras: primeira, os crentes
em todo o tempo têm sido santificados por serem justificados; segunda, os
crentes, devido a terem sido santificados, demonstram na sua experiência diária
os frutos dessa nova posição espiritual. Este conceito encaixa perfeitamente no
conceito do sacrifício irrepetível, dado uma vez, completo e único cujas
repercussões manifestam-se ao longo da vida cristã.
Sendo a santificação faz parte da
salvação e se temos parte na santificação, como poderemos evitar termos parte
na salvação?
Ao considerarmos parte da
salvação como uma obra progressiva, e em cooperação com a vontade humana,
podemos facilmente deduzir que essa mesma salvação não foi completada na cruz
(Rom. 6.10; Heb. 7.27, 9.12, 10.10) uma vez por todas. E se não foi realizada
uma vez por todas então ela não é perfeita, ao acarretar potencial de mudança.
O perfeito não tem potencial, se pudesse ser melhor, é porque ainda não é
suficientemente bom; se pudesse ser pior, é porque não é bom o suficiente.
Assim, a santificação é por muitos percebida de três maneiras: fomos
santificados, estamos sendo santificados e seremos plenamente santificados. É
praticamente inescapável a tentação de associar a ideia da progressão na
santificação com a progressão da salvação. Como se o alvo da santificação fosse
uma divinização (theosis) do crente, ideia essa mais familiar com a teologia
oriental do que com a ocidental. Justifica-se este problema teológico
considerando que a santificação não é propriamente uma divinização do crente,
mas um chegar mais próximo de Deus, ou uma intensificação da relação com Deus,
o que se torna uma autêntica ginástica argumentativa. Certamente que a salvação
é “de algo” para “algo”, do pecado para Deus, mas esta transformação é
completada na cruz, embora os seus efeitos não sejam imediatamente percebidos.
Mas este facto não implica uma imperfeição na salvação, ou a sua evolução. A
imperfeição está no EU e não no OUTRO, no crente e não em Deus. A não percepção
da completude da salvação (regeneração, justificação, santificação) apenas
demonstra o caminho a percorrer na compreensão do que outrora foi realizado de
uma vez por todas.
Se a santificação é parte da
salvação e se a salvação, na tradição reformada, é obtida unicamente pela fé e
apenas nos méritos do Salvador, como poderemos evitar a conclusão de que a
santificação, parte da salvação, é também obtida pela fé independentemente das
boas obras (Rom. 11.6)? Porque se a santificação exige cooperação, vontade ou
esforço humano, então parte da salvação é obtida pela cooperação, vontade e
esforço humanos. Chamar a santificação progressiva como outro tipo de
santificação não é apenas um exercício semântico. Seria a porta aberta para
considerar, por exemplo, dois tipos de regeneração, de justificação, ou
considerar dois tipos de morte espiritual. O Homem não vai morrendo
espiritualmente, não mais do que vai incrementalmente se santificando. Um
adulto, embora física e mentalmente desenvolvido, não é mais humano do que um
bebé, a sua essência humana continua a mesma. Um passagem que, aparentemente,
apoia a santificação progressiva é 2Cor. 13.4-6 “Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na
fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus
Cristo está em vós? Se não é que já estais reprovados”, mas lendo bem
este verso o que podemos deduzir? Quando nos examinamos a nós mesmos, o que
devemos ver? Que a nossa progressão na vida cristã é o resultado do cumprimento
de uma série de regras que, com árduo esforço, vamos a completar? Não, devemos
ver que Jesus Cristo está em nós.
É no crescimento da experiência e
maturidade cristãs, renovação do entendimento (Rom. 12.2) e na purificação da
consciência (1Tim. 1.19, Heb. 9.14, 10.22, etc.) pelo ouvir da Palavra, oração
e demais exercícios espirituais que se manifestam os frutos decorrentes da
posição de santificados. Não é a santificação que aumenta, mas são os frutos
espirituais que cada vez mais se manifestam ou são incrementados. Como uma
sombra que se vai a desvanecer pelo retirar do que obscurece a luz e não pelo
aumento do seu brilho. O brilho é constante, o que o obscurece não é. Comparemos
as traduções de Heb. 10.10 “os que são santificados”, tempo perfeito no grego,
uma acção completa no tempo presente (olha a acção e vê os seus resultados como
continuando a existir) com Rom. 3.24 “sendo justificados”, verbo no particípio
presente que indica uma acção contínua. No entanto, a justificação individual
não é contínua, indicando a justificação e respectiva santificação de várias
pessoas através dos tempos.
Que dizer da exortação de Paulo
quando escreve “operai a vossa salvação com temor e tremor” na sua carta aos
Filipenses (Fil. 2.12)? O verbo “operar” (katergazomai) neste verso está na voz
média, supondo uma cooperação entre o sujeito e o objecto da acção, e está
presente, por exemplo, em Rom. 7.13 quando Paulo afirma que o pecado “operou a
morte”. Noutros lados é traduzido com o sentido de fazer (Rom 7:15; Rom 7:17;
Rom 7:20), realizar (Rom. 7.18), operar ou produzir (Rom 4:15; Rom 5:3; 2Cor
4:17; 2Cor 7:10; Tg 1:3, 1:20), nunca de aumentar ou aperfeiçoar. Daí Paulo ao
escrever à igreja de Roma que lhes apontava o facto de na vida anterior à
conversão os crentes terem praticado coisas que envergonham e cujo fim é a
morte e logo a seguir que na nova posição de justos o fruto é para justiça. Por
associação de ideias não é correcto pensar que o fruto cujo fim é a morte
implique que o pecador vá espiritualmente morrendo, porque está morto em
delitos e pecado (Efé. 2.1), tal como não o é pensar que o fruto para justiça
implique que o crente se vá santificando, ficando espiritualmente mais vivo, ou
mesmo se vá salvando. Deus declara o pecador justo e o separa
para o seu serviço de uma vez, sem um processo gradual ou incremental de
declaração de justiça, ou de colocação para o serviço. Em 1Cor. 6.11 lemos, “mas
haveis sido lavados (aoristo médio indicativo), mas haveis sido santificados
(aoristo passivo indicativo), mas haveis sido justificados (aoristo passivo
indicativo) em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus”. Os tempos
verbais são claros, apenas na questão do “lavar” é empregue a voz média que descreve
o sujeito como participando nos resultados da acção, que
acentua o agente (enquanto a voz activa acentua a acção), relacionando a acção
mais intimamente com o sujeito. No “santificar” e “justificar” é utilizada a
voz passiva, que denota o sujeito como recebendo a acção, e no
aoristo que simplesmente indica uma acção ou acontecimento, sem definir
absolutamente o seu tempo de duração. Podemos então concluir que o que
comummente se designa por crescimento em santificação não é nada mais do que o
incremento da experiência da posição de santos outorgada na cruz, trazendo à
fruição o resultado da vida nova em Cristo, uma experiência sobretudo reactiva
à acção do Espírito Santo, à Palavra lida e pregada, à vida de oração pessoal e
comunitária, à comunhão com os outros santos. O aperfeiçoamento da santidade,
como descrito em 2Cor. 7.1, não é mais do que o refinamento do crente pela
provação descrita em 1Pe. 1.6, isto é, ta como o metal precioso que não é
incrementado na sua substância, ou no seu volume, mas apenas “lavado” ou
“purificado” das impurezas que o impedem de brilhar. Alguns conceitos de
santificação carecem de rigor bíblico e podem colocar fardos, cadeias sobre os
crentes e conduzi-los à depressão espiritual pelo facto de se colocarem sob a
lei das obras. Estarão sempre duvidando da sua salvação porque nunca se
sentindo “devidamente” santificados. Tornar-se-ão legalistas e acusadores,
porque por um lado exigirão aos outros as mesmas regras que eles próprios acham
necessárias à salvação, por outro porque espelharão sobre os seus irmãos as
suas próprias frustrações e angústias espirituais.
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