quarta-feira, 21 de maio de 2025

Santificação III

3. Crítica

SANTIFICAÇÃO PROGRESSIVA (obras salpicadas pela graça)

Normalmente acontece que os crentes recentemente convertidos são levados a pensar que as suas obras contribuem para a santificação como reacção à sua recente e passada vida de pecado e querem definitivamente colocar-se fora da alçada do pecado torando-se extremamente zelosos pelas boas obras, tornando a sua vida cristã num conjunto de regras a cumprir, de “obrigações” e “regras”. É indubitavelmente um salto radical, mas por esforço próprio. Acreditam piamente que o sucesso da sua vida cristã depende dos seus esforços, do reconhecer e pedir perdão pelos pecados, do tentar adivinhar qual o pecado que impede o incremento da salvação, do tentar encontrar a receita exacta para um “comportamento cristão” religiosamente correcto. Quando falham duvidam da salvação. Caem num comportamento cíclico que oscila entre a felicidade pelo sucesso e a depressão pelo fracasso. Dificilmente terão a alegria da salvação tornando-se amargos, legalistas que olharão os seus irmãos espirituais com um olhar inquisidor e competitivo, numa corrida onde há vencedores (obras melhores) e vencidos (obras piores). O Reformed Baptist Daily reporta o seguinte “a santificação progressiva é o processo através do qual diariamente nos tornamos mais semelhantes a Cristo”. MacArthur escreve que a santificação é um trabalho duro. Compreendo o teor da mensagem, mas é uma derrapagem doutrinária bastante acentuada, pois se assim for concluímos que o trabalho árduo é um requisito para a salvação, contrariando as Escrituras; Berkhof escreve na sua Systemathic Theology “Pode-se definir a

santificação como a graciosa e contínua operação do Espírito Santo pela qual Ele liberta o pecador justificado da corrupção do pecado, renova toda a sua natureza à imagem de Deus, e o capacita a praticar boas obras” veiculando a ideia de uma renovação progressiva do crente; Milllard Erickson dedica o capítulo 46 da sua Teologia Sistemática à santificação e intitula-a “A continuidade da salvação” e, adiante, “ser santificado significa pertencer ao Senhor”. Santificação, nesse sentido, é algo que ocorre logo no início da vida cristã, no momento da conversão, com a regeneração e a justificação” e logo mais abaixo “o processo de nos tornarmos mais semelhantes a Cristo”. Mas não é assim. Ainda que a santificação seja exclusivamente de Deus, isto é, o seu poder reside inteiramente na santidade dele, o crente é exortado constantemente a agir e a crescer no que diz respeito à salvação (…) Portanto, mesmo que a santificação seja obra de Deus, o crente também tem o seu papel, que inclui tanto a remoção da pecaminosidade quanto o desenvolvimento da santidade”. Conforme o tradicionalmente ensinado, a santificação do crente é contínua e gradual: ocorre durante toda a vida do crente; é uma transformação moral e espiritual: leva à conformidade com a imagem de Cristo (Romanos 8:29); é uma cooperação entre Deus e o crente: embora o Espírito Santo opere no crente, ele também tem a responsabilidade de obedecer e buscar a santificação; é dinâmica: pode haver avanços e retrocessos, mas o processo continua até o crente ser glorificado. Neste processo inevitavelmente tem de subjazer o elemento de aumento, de incremento.

Nesta visão, a santificação posicional é o fundamento sobre o qual se constrói a santificação progressiva. Em Cristo, o crente já é santo e justificado (posição), mas ainda é chamado a crescer em santidade diariamente (progressão). Esse crescimento reflecte a obra contínua do Espírito Santo e a resposta obediente do crente. O processo culminará na santificação final ou glorificação, quando estaremos completamente livres do pecado e semelhantes a Cristo na eternidade.

Na prática, e nesta visão, trata-se de uma dupla santificação, é posicional e progressiva, é única e contínua, somos santos, mas vamo-nos a tornar mais santos, o “agora e ainda não” na teologia. Todavia, convém a bem da argumentação que o “agora e ainda não”, pode não consiste numa progressão de estado, mas simplesmente no estado que no âmbito jurídico de denomina de facto e de jure. O que representa uma situação que, do ponto de vista legal, é válida e legítima, independentemente de como ela funciona na prática em contraste com a descrição do que realmente acontece, mesmo que não seja na prática confirmado. O crente é santo de jure, pela declaração de justificado, mas de facto, na prática do quotidiano, ainda possa não discernir a sua posição legal. Tal como os escravos libertados nos EUA no século 19 que, embora legalmente libertados, libertos de jure, durante algum tempo ainda se comportariam de facto como escravos. Todavia, não eram mais progressivamente mais livres do que anteriormente.

 

SANTIFICAÇÃO POSICIONAL

Tendo em conta que no grego os tempos verbais dizem mais da qualidade da acção do que propriamente o seu tempo em termos cronológicos, o tempo perfeito em Heb. 10.10 traduzido para português “temos sido santificados” implica uma acção que teve lugar algures no passado, mas cuja relevância se manifesta, ou vai-se manifestando, no presente. O “temos sido santificados” pode ser compreendido de duas maneiras: primeira, os crentes em todo o tempo têm sido santificados por serem justificados; segunda, os crentes, devido a terem sido santificados, demonstram na sua experiência diária os frutos dessa nova posição espiritual. Este conceito encaixa perfeitamente no conceito do sacrifício irrepetível, dado uma vez, completo e único cujas repercussões manifestam-se ao longo da vida cristã.

Sendo a santificação faz parte da salvação e se temos parte na santificação, como poderemos evitar termos parte na salvação?

Ao considerarmos parte da salvação como uma obra progressiva, e em cooperação com a vontade humana, podemos facilmente deduzir que essa mesma salvação não foi completada na cruz (Rom. 6.10; Heb. 7.27, 9.12, 10.10) uma vez por todas. E se não foi realizada uma vez por todas então ela não é perfeita, ao acarretar potencial de mudança. O perfeito não tem potencial, se pudesse ser melhor, é porque ainda não é suficientemente bom; se pudesse ser pior, é porque não é bom o suficiente. Assim, a santificação é por muitos percebida de três maneiras: fomos santificados, estamos sendo santificados e seremos plenamente santificados. É praticamente inescapável a tentação de associar a ideia da progressão na santificação com a progressão da salvação. Como se o alvo da santificação fosse uma divinização (theosis) do crente, ideia essa mais familiar com a teologia oriental do que com a ocidental. Justifica-se este problema teológico considerando que a santificação não é propriamente uma divinização do crente, mas um chegar mais próximo de Deus, ou uma intensificação da relação com Deus, o que se torna uma autêntica ginástica argumentativa. Certamente que a salvação é “de algo” para “algo”, do pecado para Deus, mas esta transformação é completada na cruz, embora os seus efeitos não sejam imediatamente percebidos. Mas este facto não implica uma imperfeição na salvação, ou a sua evolução. A imperfeição está no EU e não no OUTRO, no crente e não em Deus. A não percepção da completude da salvação (regeneração, justificação, santificação) apenas demonstra o caminho a percorrer na compreensão do que outrora foi realizado de uma vez por todas.

Se a santificação é parte da salvação e se a salvação, na tradição reformada, é obtida unicamente pela fé e apenas nos méritos do Salvador, como poderemos evitar a conclusão de que a santificação, parte da salvação, é também obtida pela fé independentemente das boas obras (Rom. 11.6)? Porque se a santificação exige cooperação, vontade ou esforço humano, então parte da salvação é obtida pela cooperação, vontade e esforço humanos. Chamar a santificação progressiva como outro tipo de santificação não é apenas um exercício semântico. Seria a porta aberta para considerar, por exemplo, dois tipos de regeneração, de justificação, ou considerar dois tipos de morte espiritual. O Homem não vai morrendo espiritualmente, não mais do que vai incrementalmente se santificando. Um adulto, embora física e mentalmente desenvolvido, não é mais humano do que um bebé, a sua essência humana continua a mesma. Um passagem que, aparentemente, apoia a santificação progressiva é 2Cor. 13.4-6 “Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós? Se não é que já estais reprovados”, mas lendo bem este verso o que podemos deduzir? Quando nos examinamos a nós mesmos, o que devemos ver? Que a nossa progressão na vida cristã é o resultado do cumprimento de uma série de regras que, com árduo esforço, vamos a completar? Não, devemos ver que Jesus Cristo está em nós.

É no crescimento da experiência e maturidade cristãs, renovação do entendimento (Rom. 12.2) e na purificação da consciência (1Tim. 1.19, Heb. 9.14, 10.22, etc.) pelo ouvir da Palavra, oração e demais exercícios espirituais que se manifestam os frutos decorrentes da posição de santificados. Não é a santificação que aumenta, mas são os frutos espirituais que cada vez mais se manifestam ou são incrementados. Como uma sombra que se vai a desvanecer pelo retirar do que obscurece a luz e não pelo aumento do seu brilho. O brilho é constante, o que o obscurece não é. Comparemos as traduções de Heb. 10.10 “os que são santificados”, tempo perfeito no grego, uma acção completa no tempo presente (olha a acção e vê os seus resultados como continuando a existir) com Rom. 3.24 “sendo justificados”, verbo no particípio presente que indica uma acção contínua. No entanto, a justificação individual não é contínua, indicando a justificação e respectiva santificação de várias pessoas através dos tempos.

Que dizer da exortação de Paulo quando escreve “operai a vossa salvação com temor e tremor” na sua carta aos Filipenses (Fil. 2.12)? O verbo “operar” (katergazomai) neste verso está na voz média, supondo uma cooperação entre o sujeito e o objecto da acção, e está presente, por exemplo, em Rom. 7.13 quando Paulo afirma que o pecado “operou a morte”. Noutros lados é traduzido com o sentido de fazer (Rom 7:15; Rom 7:17; Rom 7:20), realizar (Rom. 7.18), operar ou produzir (Rom 4:15; Rom 5:3; 2Cor 4:17; 2Cor 7:10; Tg 1:3, 1:20), nunca de aumentar ou aperfeiçoar. Daí Paulo ao escrever à igreja de Roma que lhes apontava o facto de na vida anterior à conversão os crentes terem praticado coisas que envergonham e cujo fim é a morte e logo a seguir que na nova posição de justos o fruto é para justiça. Por associação de ideias não é correcto pensar que o fruto cujo fim é a morte implique que o pecador vá espiritualmente morrendo, porque está morto em delitos e pecado (Efé. 2.1), tal como não o é pensar que o fruto para justiça implique que o crente se vá santificando, ficando espiritualmente mais vivo, ou mesmo se vá salvando. Deus declara o pecador justo e o separa para o seu serviço de uma vez, sem um processo gradual ou incremental de declaração de justiça, ou de colocação para o serviço. Em 1Cor. 6.11 lemos, “mas haveis sido lavados (aoristo médio indicativo), mas haveis sido santificados (aoristo passivo indicativo), mas haveis sido justificados (aoristo passivo indicativo) em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus”. Os tempos verbais são claros, apenas na questão do “lavar” é empregue a voz média que descreve o sujeito como participando nos resultados da acção, que acentua o agente (enquanto a voz activa acentua a acção), relacionando a acção mais intimamente com o sujeito. No “santificar” e “justificar” é utilizada a voz passiva, que denota o sujeito como recebendo a acção, e no aoristo que simplesmente indica uma acção ou acontecimento, sem definir absolutamente o seu tempo de duração. Podemos então concluir que o que comummente se designa por crescimento em santificação não é nada mais do que o incremento da experiência da posição de santos outorgada na cruz, trazendo à fruição o resultado da vida nova em Cristo, uma experiência sobretudo reactiva à acção do Espírito Santo, à Palavra lida e pregada, à vida de oração pessoal e comunitária, à comunhão com os outros santos. O aperfeiçoamento da santidade, como descrito em 2Cor. 7.1, não é mais do que o refinamento do crente pela provação descrita em 1Pe. 1.6, isto é, ta como o metal precioso que não é incrementado na sua substância, ou no seu volume, mas apenas “lavado” ou “purificado” das impurezas que o impedem de brilhar. Alguns conceitos de santificação carecem de rigor bíblico e podem colocar fardos, cadeias sobre os crentes e conduzi-los à depressão espiritual pelo facto de se colocarem sob a lei das obras. Estarão sempre duvidando da sua salvação porque nunca se sentindo “devidamente” santificados. Tornar-se-ão legalistas e acusadores, porque por um lado exigirão aos outros as mesmas regras que eles próprios acham necessárias à salvação, por outro porque espelharão sobre os seus irmãos as suas próprias frustrações e angústias espirituais. 


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