quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Corpo místico e Colectivismo

Não deixa de ser paradoxal o engrandecimento do indivíduo no campo religioso tendo origem num tempo em que o colectivismo arrasa completamente o indivíduo a todos os níveis. A ideia subjacente é que a religião democratizada pertence apenas ao âmbito da nossa vida privada e que se trata apenas de um campo pessoal e não colectivo. Alguma razão existe nesse princípio. Falando na religião que mais fez pelo ser humano enquanto indivíduo, o cristianismo, é óbvia a ideia de que o relacionamento com o divino pertence à esfera pessoal e só admite a intermediação do mediador nomeado por quem teve a iniciativa do Pacto e que se deu voluntariamente para tal.

No nosso tempo existe um exército de pessoas intrometidas e apostadas na destruição do isolamento onde quer que ele se manifeste. Os entendidos chamam a isso “despertar os jovens”, “tirá-los da apatia”, “vencer a introspecção” e outras fórmulas geradas por estudos da psique e implementadas em crescendo na educação das massas. Todavia, relegar a religião ao isolamento não deixa de ser perigoso. Fazer da religião um assunto de natureza privada e em simultâneo suprimir essa mesma privacidade é uma arma eficaz contra a elevação do indivíduo enquanto tal. É ludibriá-lo com a percepção de que se lhe dá a liberdade ao mesmo tempo que se lha tira. Não é errado insistir na individualidade da religião cristã se na mesma frase incluirmos a necessidade da sua profissão no âmbito de um colectivo. Por detrás disto reside o pensamento óbvio de que o colectivismo moderno é um atentado e um desprezo à dignidade e natureza humanas.

O colectivo secular existe para o bem natural individual e não tem bem mais elevado do que facilitar o florescimento e protecção da família, da amizade e da solidão. Ser feliz no lar é a finalidade de todo o esforço humano e toda e qualquer lei escrita deve partir do conceito familiar, deve ter um movimento ascendente até ao governo secular e não o inverso. O que é mais prazenteiro do que observar uma família numa refeição, ou dois amigos a conversar, ou um solitário a apreciar uma bebida, um livro? As actividades do colectivo são necessárias, mas elas não são o fim em si mesmo. A razão de ser delas é o núcleo desse mesmo colectivo, assim como o sentido da existência de uma cadeira é a pessoa que se assenta nela, o de um livro o seu leitor, o da música aquele que a escuta. O sentido da existência de algo está sempre fora dele. Haverá sacrifícios do individual em favor do colectivo tais como comer um pouco menos para que ninguém passe fome, mas não se pode confundir um mal necessário com o bem. É fatal a tendência dos meios invadirem os fins a que estavam destinados a servir.

O antídoto a esse colectivismo moderno tem como analogia, senão mesmo a sua solução, na imagem que o apóstolo Paulo deu da Igreja como corpo místico de Cristo. Se a sociedade for considerada como um corpo os seus membros terão o seu direito ao individualismo que providenciará o desabrochar da sua natureza enquanto indivíduos sem, no entanto, deixar de pertencer a esse corpo que se chama sociedade. E com o termo “membros” quero dizer aquilo a que chamamos de órgãos, coisas diferentes e complementares, coisas que diferem não apenas em função, mas também em dignidade. Todos diferentes e todos complementares. Ser membro de um corpo difere sempre do açambarcamento do indivíduo pelo colectivo assim como um membro de uma família nunca se esvanecerá na família enquanto tal. Nenhum membro familiar se substitui a outro, cada um é único e quase uma espécie em si mesmo e o subtrair qualquer um dos seus membros vai provocar não uma redução na quantidade, mas uma autêntica ferida na sua estrutura.

A vida pessoal e privativa reside num nível inferior à sua participação no corpo, a da família é inferior à sua participação na comunidade, mas também a vida colectiva é inferior à vida pessoal e privativa e não tem valor a não ser em seu serviço dado que a comunidade secular existe para o bem natural dos seus membros e o sacrifício da privacidade enquanto indivíduo que nos é exigido deve concorrer no crescimento da personalidade que a vida do corpo encoraja. Os que são membros uns dos outros tornam-se sempre tão diferentes e complementares entre si tal como os ouvidos e a boca. No colectivismo as pessoas tendem a monotonamente a serem tão iguais entre si quando comparadas com os elementos de um corpo cuja analogia maior é a dada por Paulo nas suas cartas e onde a ambiguidade e a antítese entre individualismo e colectivismo é removida.

Igualdade é um termo quantitativo e a caridade frequentemente nada sabe a respeito disso.

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